Com BBC News Brasil
O Supremo Tribunal Federal (STF) já tem maioria para endurecer a regulamentação das plataformas digitais no país.
Nesta quarta-feira (11/6), a Corte somou seis votos para que as empresas sejam obrigadas a deletar conteúdos considerados criminosos, sem necessidade de uma decisão judicial prévia como ocorre hoje.
Decidiram nesse sentido os ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Flavio Dino, Cristiano Zanin e Gilmar Mendes.
Os votos, porém, têm divergências entre si. Ainda não há um consenso sobre qual será a extensão das novas obrigações e como elas serão aplicadas. Um dos desafios é definir qual instituição fará o acompanhamento e a fiscalização das novas obrigações das plataformas.
A análise do tema será retomada nesta quinta-feira (12/6), quando devem se manifestar os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes, mas ainda não há previsão de quando o julgamento será encerrado.
Depois, ainda faltarão votar Cármen Lúcia, que está fora do país, e Nunes Marques, que já avisou que pedirá mais tempo para analisar o caso.
Segundo Barroso, presidente do STF, esse intervalo vai servir para que os ministros busquem um voto mais consensual sobre as novas regras a serem aplicadas.
Defensores de regras mais rígidas sobre o setor dizem que isso vai evitar a circulação de conteúdo criminoso, como mensagens que incentivem assassinatos em escolas ou ataques contra o sistema democrático.
Já os críticos consideram que as empresas vão acabar deletando conteúdos legítimos com medo de punições, afetando a liberdade de expressão.
Apesar de algumas diferenças no teor das decisões, os seis ministros que votaram pelo endurecimento das regras defendem que empresas podem ser obrigadas a deletar certos conteúdos criminosos após serem notificadas por usuários, sem necessidade de uma decisão judicial específica.
E, em casos de crimes considerados mais graves, como pornografia infantil, incitação à suicídio ou mensagens contra o Estado Democrático, eles consideram que as empresas têm obrigação de apagar os conteúdos mesmo sem notificação prévia.
Para Barroso, Toffoli, Dino, Zanin e Mendes, as empresas poderiam ser responsabilizadas caso se comprove uma falha generalizada em conter esses conteúdos, por exemplo.
Em seu voto, Dino defendeu que não há liberdade de expressão absoluta e citou em sua manifestação casos de crianças assassinadas em escolas após perfis nas redes sociais estimularem esses ataques.
“Eu só consigo imaginar que devemos, como tribunal, avançar na direção da liberdade com responsabilidade, da liberdade regulada, que é a única verdadeira liberdade”.
Um dos temas que gera divergência, mesmo entre os que defendem regras mais duras, é a remoção de conteúdos no caso de crimes contra a honra, como calúnia e difamação.
Toffoli e Fux votaram para que esse tipo de mensagem seja removida já a partir da notificação, enquanto Barroso e Dino dizem que, nesses casos, ainda seria necessária uma decisão judicial.
Zanin, por sua vez, votou para que conteúdos claramente criminosos sejam removidos a partir da notificação, enquanto mensagens em que o teor criminoso não seja evidente — ou seja, em que exista dúvida se, de fato, seria calúnia ou difamação — poderiam ser mantidas no ar até uma eventual decisão judicial pela remoção.
“Me parece importante nós refletirmos sobre essa diferenciação porque muitas e muitas postagens repetem ofensas, inclusive já consideradas como crime contra a honra na Justiça, com condenações por danos morais, condenações da justiça criminal, e mesmo assim são repetidas e repetidas, anos e anos”, defendeu Moraes, durantes os debates do julgamento.
“E, para cada uma dessas, se houver a necessidade de ingressar novamente em juízo, nós vamos perder efetividade”, continuou.
Barroso concordou, mas defendeu que alguns casos deveriam ser tratados de forma diferente.
“Eu não tenho nenhuma dúvida [nesse caso], concordo plenamente. A minha dúvida é como tratar [um conteúdo] assim: ‘fulano enriqueceu dando golpes na praça’. Aí o sujeito se sente injuriado, é a plataforma que tem que decidir se isso vai ser removido ou não? Aí eu prefiro que seja uma briga privada entre o ofendido e o ofensor [na Justiça], e não a plataforma intervindo”, argumentou o presidente do STF.
Até o momento, André Mendonça foi o único que votou para manter, de modo geral, o atual modelo, em que empresas só podem ser responsabilizadas por conteúdos de terceiros caso se recusem a cumprir decisões da Justiça.
Ele destacou apenas três situações excepcionais em que as plataformas podem ser penalizadas por não excluírem conteúdos criminosos, mesmo sem uma determinação judicial.
Segundo o ministro, são casos em que já previsão legal para obrigar a exclusão dos conteúdos: postagens que firam direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente, como pornografia infantil; conteúdos irregulares relacionados a empresas de apostas (as chamadas bets); e conteúdos íntimos divulgados sem autorização (como imagens de nudez).
Para Mendonça, caberia apenas ao Congresso, por meio de novas leis, determinar outros conteúdos que teriam que ser deletados sem prévia determinação da Justiça.
“Excetuados os casos expressamente autorizados em lei, as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas pela ausência de remoção de conteúdo veiculado por terceiros”, defendeu, ao votar na semana anterior.
Grandes plataformas como Google (dona do YouTube), Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp) e X (antigo Twitter) se opõem ao endurecimento das regras, que podem aumentar seus custos operacionais e o risco de punições, como multas elevadas caso não cumpram regras novas.
“As plataformas vão ter que preventivamente remover qualquer conteúdo que seja potencialmente questionável para evitar uma responsabilização ou um passivo financeiro”, disse o presidente do Google no Brasil, Fábio Coelho, em entrevista recente ao portal UOL
A volta do tema na Corte ocorre em um momento de tensão entre o STF, empresas do setor e o governo dos Estados Unidos. Nas últimas semanas, a gestão Trump intensificou as ameaças de retaliação a autoridades estrangeiras que têm atuado para regular plataformas digitais ou tomado decisões contra usuários que estariam cometendo crimes em redes sociais — ações que a Casa Branca considera censura.
O ministro do STF Alexandre de Moraes foi citado nominalmente como um dos potenciais alvos de sanções pelo secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio.
Entenda melhor a seguir o contexto de ameaças ao STF, o que a Corte está julgando e o que pode ser decidido.
O contexto de ameaças de Trump ao Supremo
A análise do tema no STF começou em dezembro, mas foi interrompida por pedido de vista (mais tempo para analisar o caso) do ministro André Mendonça. Com o fim do prazo para vista, Mendonça liberou as ações para julgamento no final de maio e o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, pautou o julgamento para início de junho.
A retomada ocorreu em um momento em que toda a Corte parece estar na mira do governo Trump, mas o foco claro está em Moraes.
Nos últimos anos, o ministro suspendeu contas em plataformas ou determinou a prisão de pessoas que teriam proferido discursos antidemocráticos e ameaçado autoridades brasileiras no ambiente virtual, atingindo grandes empresas sediadas nos EUA. Ele chegou a suspender a atuação do X no país, quando a empresa americana se recusou a cumprir suas decisões.
Atualmente, o ministro é relator de um processo criminal sobre uma suposta tentativa de golpe de Estado liderada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) está nos EUA articulando para que a Casa Branca retalie Moraes, por exemplo com a proibição de sua entrada no país ou a aplicação Lei Global Magnitsky, que impede qualquer pessoa ou empresa nos EUA de realizar transações econômicas com o alvo das sanções.
Em resposta, o ministro atendeu ao pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) e abriu um inquérito para investigar o filho do ex-presidente por tentativa de obstrução de Justiça.
Para Pablo Ortellado, professor de gestão de políticas públicas na USP, a retomada do julgamento neste momento pode ser entendida como uma resposta institucional do STF às ameaças do governo Trump.
“Tem um jogo de pressão mútua. Ficou claro nas manifestações do Departamento de Estado [sobre potenciais sanções contra autoridades estrangeiras] que aquilo era sobre o Brasil, sobretudo. E, secundariamente, por extensão, Europa. Não sei se foi só isso, mas com certeza isso faz parte do contexto da retomada do julgamento”, ressalta.
Para a especialista em governança e regulação digital Bruna Santos, as ameaças do governo Trump mostram que a Casa Branca identificou que é do STF que pode sair uma regulação das plataformas, já que o tema está travado no Congresso brasileiro.
“A retomada do julgamento, acima de tudo, é mais uma das demonstrações de força do Judiciário brasileiro com relação ao tema de regulação de plataformas. Mostra que o Judiciário tem esse interesse em oferecer respostas que o Congresso não ofereceu”, disse Santos, que atua na Witness, organização baseada nos EUA que promove o uso da tecnologia para defesa dos direitos humanos.
A regulamentação das plataformas é defendida pelo governo Lula e repudiada pelo campo bolsonarista.
No final de maio (30/5), Jair Bolsonaro exaltou a participação de Google e Meta no 2º Seminário Nacional de Comunicação do Partido Liberal (PL), em Fortaleza. As duas empresas apresentaram como funcionam alguns de seus produtos, como ferramentas de Inteligência Artificial.
Procuradas pela BBC News Brasil, Google e Meta negaram qualquer alinhamento com campos políticos e informaram que o mesmo tipo de apresentação já foi oferecido para outras instituições e partidos.
“Passou aqui o representante da Google e da Meta. Estão do lado certo, juntamente com as diretrizes da Primeira Emenda [da Constituição] dos Estados Unidos. A liberdade de expressão é a nossa alma, é o nosso oxigênio”, afirmou Bolsonaro, no evento.
Em seu discurso, o ex-presidente também disse contar com a ajuda do governo Trump, após citar a atuação do seu filho nos EUA.
“Não é fácil, mas nós venceremos. Com a ajuda de Deus e também com a ajuda de outro país lá do norte. Enganam-se aqueles que acham que só nós temos condições de reverter esse sistema. Não temos. Precisamos de ajuda de terceiros”, disse.
Lula, por sua vez, atacou a atuação de Eduardo Bolsonaro nos EUA e disse que, se algo concreto acontecer, “o Brasil vai defender, não só o seu ministro, mas defender a Suprema Corte”.
“O que é lamentável é que um deputado brasileiro, filho do ex-presidente, está lá a convocar os Estados Unidos para se meter na política interna do Brasil. É uma prática terrorista, um prática antipatriótica”, disse, em entrevista a jornalistas no início de junho (3/6) no Palácio do Planalto.